terça-feira, 15 de setembro de 2009

CULTURA: Dostoievski e o Brasil

Biógrafo de Dostoievski fala do elo entre o autor e o Brasil :
Especialista na obra do escritor, Joseph Frank, professor de Princeton e Stanford, fala à professora Aurora Bernardini, da USP, sobre a proximidade entre o Brasil e o universo do autor de "Crime e Castigo"
Joseph Frank, professor de literatura comparada na Universidade de Princeton e de línguas e literaturas eslavas e literatura comparada na Universidade Stanford, é considerado hoje um dos maiores conhecedores de Fiódor Dostoiévski, ao estudo de cuja obra dedicou grande parte de sua vida (o professor nasceu em 1918).
Ele é autor de muitos livros, entre os quais se destacam: "Dostoiévski - As Sementes da Revolta (1821-1849)"; "Dostoiévski - Os Anos de Provação (1850-1859)"; "Dostoiévski - Os Efeitos da Libertação (1860-1865)"; "Dostoiévski - Os Anos Milagrosos (1865-1871)"; "Pelo Prisma Russo - Ensaios sobre Literatura e Cultura", todos publicados pela Edusp, que lança neste mês o último volume da série sobre o escritor russo: "Dostoiévski - O Manto do Profeta (1871-1881)". Joseph Frank teve a complacência de responder prontamente às perguntas desta entrevista, algumas delas intencionalmente "intrigantes" – como diz o emérito professor –, uma vez que suas respostas, em certos aspectos, discutem convicções de Mikhail Bakhtin (segundo o qual, por exemplo, as idéias e as consciências dos personagens de Dostoiévski são autônomas, não podendo ser levadas a um denominador ideológico comum), de filósofos como Luigi Pareyson, que está convencido de que em Dostoiévski a experiência fundamental e decisiva é a experiência do mal, de especialistas como Evel Gasperini (Universidade de Pádua), de acordo com o qual, em sua maturidade, Dostoiévski nunca teria acreditado na natureza transcendente de Cristo, dando roupagens cristãs a particulares correntes mais antigas dos povos eslavos, ou ainda de Pierre Pascal (Universidade de Paris), que pergunta: "O paraíso na terra, que Dostoiévski não define, é cristão?" Leia abaixo a entrevista:
Como o sr. sabe, seus livros sobre Dostoiévski tiveram uma recepção muito favorável no Brasil, apesar de a leitura não ser um dos entretenimentos preferidos no país. "As Sementes da Revolta", o primeiro da série, teve sua edição esgotada logo depois da publicação. Agora que a Edusp está publicando o quinto e último volume, poderia nos dizer qual é, na sua opinião, o motivo desse sucesso? Uma resposta possível sobre o sucesso de meus livros no Brasil talvez seja a fascinação mundial por Dostoiévski, cujos romances parecem ganhar importância com o passar do tempo. Muitas vezes me surpreende a extensão em que encontramos referências a seu nome e suas obras até em jornais. Os problemas que ele dramatiza, especialmente o choque entre razão e fé e os dilemas morais que surgem do desejo de transformar a sociedade como um todo, emergem de seu próprio entorno, a Rússia de meados do século 19. Mas ele tinha certeza do que eram os problemas do mundo moderno em geral, e a contínua popularidade de seus livros parece provar que tinha razão. Outro motivo pelo qual os leitores brasileiros poderiam se interessar especialmente por suas obras é porque se concentram no choque entre a cultura européia ocidental e o que Dostoiévski considerava valores originais russos, decorrentes da tradição nativa. Pelo pouco que sei sobre a cultura brasileira (infelizmente, pouco demais), me ocorre que talvez sua própria mistura de culturas dê aos romances de Dostoiévski uma ressonância especial em seu país. Quanto ao sucesso dos meus livros, talvez seja conseqüência de meus esforços para situar suas obras no contexto ideológico russo a que ele reagia. Eles contêm uma boa medida da história cultural russa, que, além de seus romances, tem um grande interesse por si só.
Seria um dos motivos o interesse de Dostoiévski pelo lado mais escuro da alma humana? Não tenho certeza se concordo que Dostoiévski tem um interesse especial por retratar "o lado mais escuro da alma humana". Seus personagens podem cometer crimes, mas nenhum deles é um completo vilão cujos atos não demonstrem nenhum sentimento moral ou que aprecie o mal pelo próprio mal. Pelo contrário, são invariavelmente consumidos pela culpa e pelo remorso por causa de seus erros, mesmo que tentem justificar-se com argumentos tirados das idéias de sua época.
O sr. interpreta os "romances polifônicos" de Dostoiévski como o fim do "paternalismo" na literatura -do lado do narrador-, como afirma Bakhtin (1895-1975)? Eu admiro os textos de Bakhtin, mas acho que ele exagera a originalidade formal de Dostoiévski na história do romance. Por "paternalismo", suponho que esteja me perguntando se as teorias de Bakhtin marcam o fim do autor onisciente, que ele identifica com Tolstói. Mas há romancistas anteriores que também entram na consciência de seus personagens, como Jane Austen, por exemplo, e Dostoiévski é muito menos original nesse sentido do que Bakhtin o pinta. E também a idéia do "romance polifônico", de Bakhtin, que parece implicar a ausência de um autor controlador, é paradoxal.
Se as diferentes consciências dos diversos personagens pudessem ser resumidas em um denominador comum, qual seria? Eu diria que um denominador comum dos personagens dos maiores romances de Dostoiévski é a luta entre uma ideologia que tenta substituir a existente, baseada na civilização judaico-cristã, e uma consciência moral moldada nos valores dessa tradição.
No prefácio ao segundo livro da série, "Os Anos de Provação (1850 a 1859)", que recebeu o National Book Critics Award de biografia em 1984, o sr. diz que o método que escolheu foi o de "fundir biografia, crítica literária e história cultural social". Acha que, com essa abordagem, o que o sr. tão bem descreveu como ideologia de Dostoiévski pode às vezes ser confundido com a interpretação que fez de alguns personagens? Só posso esperar que esse tipo de confusão mencionado não seja o caso. Uma boa parte do gênio de Dostoiévski, na minha opinião, é sua capacidade de mostrar a fusão entre ideologia e personagem, a maneira como as idéias que um personagem aceita influenciam o nível mais profundo de seus sentimentos e seu comportamento. Por isso retratei o efeito dessas idéias nos atos dos personagens, mas também tentei esboçar a ideologia da época, independentemente da maneira como Dostoiévski a usou em seus romances.
A diferença que Dostoiévski fazia entre o "socialismo utópico", que admirava, e o "niilismo russo", que desprezava, aparece em "Crime e Castigo"? Sim, creio que a diferença entre socialismo utópico e niilismo russo aparece em "Crime e Castigo". O personagem Lebeziátnikov, como digo em meu livro, "profere os clichês socialistas utópicos do início dos anos 1860", e Raskólnikov representa as últimas conseqüências do niilismo russo como Dostoiévski as concebia.
Por que, na sua opinião, Dostoiévski se dedicava muito mais a pintar o mal do que o bem? O objeto principal de Dostoiévski, no início dos anos 1860, era combater o que considerava os efeitos desintegradores das doutrinas do niilismo russo. Para tanto precisava mostrar todas as suas conseqüências malignas. Em certo sentido, do seu ponto de vista, ele mostrava o bem, pois continuava mostrando a luta interna dos personagens contra suas próprias idéias. Também se deve ter em mente que, na única declaração de próprio punho que temos sobre suas convicções religiosas, redigida enquanto ele velava o corpo de sua primeira mulher, escreveu que "amar ao homem como a si mesmo, segundo o mandamento de Cristo, é impossível. A lei da personalidade na terra não o permite. O ego atrapalha". Era a luta contra esse ego que constituía "o bem" para Dostoiévski.
Qual era o tipo de cristianismo de Dostoiévski? Qual é o significado do sofrimento na existência humana, segundo ele? Não tenho certeza de o que significa perguntar "qual era o tipo de cristianismo de Dostoiévski?". Ele se considerava um membro fiel da Igreja Ortodoxa Russa, cujos dogmas, deve-se lembrar, são muito mais fluidos que os da Igreja Católica Apostólica Romana.Quanto ao significado do sofrimento na existência humana, é importante lembrar que Dostoiévski falava em "sofrimento moral", decorrente do fracasso em cumprir a lei de Cristo. Não se referia ao "sofrimento" causado pela privação material. No documento citado, ele escreveu que "o homem luta na terra por um ideal oposto à sua natureza", e esse ideal exige que sacrifique seu ego às pessoas ou a outra pessoa. Quando deixa de fazê-lo, "sofre e chama isso de pecado". Mas ele acreditava que esse sofrimento era "compensado pela alegria celestial de cumprir a lei, isto é, pelo sacrifício".
No quinto volume da série, "O Manto do Profeta", o sr. descreve o "Diário" de Dostoiévski, entre outros livros. Em setembro de 1837, Dostoiévski publicou em seu "Diário" um texto chamado "Uma Mentira é Salva por Outra Mentira", em que acrescentou um episódio inexistente ao "Dom Quixote", de Cervantes. Quixote comenta com Sancho por que criaturas como eles (os chamados "cavalieri erranti") são capazes de aniquilar exércitos inteiros: é porque a primeira mentira é salva por uma segunda mentira. Isso significa que Dostoiévski não estava absolutamente certo de suas crenças, que, não obstante, tinham de ser mantidas vivas? Esta é a pergunta mais intrigante desta entrevista, e não há possibilidade de uma resposta inequívoca. Dostoiévski acreditava incondicionalmente em suas próprias idéias? Tudo o que podemos dizer é que certamente conseguiu apresentar aquilo que se opunha a elas com uma força artística impressionante. Mas devemos ter em mente que o poder da convicção emocional sempre foi mais importante para Dostoiévski que a razão ou a racionalidade, e talvez estivesse defendendo essas convicções nesse artigo notável. Certa vez ele disse que, se alguém o convencesse de que Cristo era contrário à "verdade", preferiria ficar com Cristo a ficar com "a verdade" (o que supostamente significa a verdade da razão). Seu artigo foi escrito, devemos lembrar, quando os russos sofriam perdas terríveis durante a Guerra Russo-Turca.
Fonte: Folha de S.Paulo(original).
site Vermelho

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